Douglas de Freitas

São Paulo, 2013

O universo da literatura, ou da contação de histórias, é cheio de lugares. Criar uma história é criar um lugar para que ela aconteça, construir através da narrativa um terreno, uma cartografia que, mesmo fantástica e impossível de existir em nosso mundo regido por regras da física, de conta de situar e inserir o leitor nesse universo, torna-lo parte dessa história. A Fábula – que significa em latim ‘o que é dito’ – é um gênero literário que tem origem no oriente, de uma tradição de história oral, e é construída por um mundo onde animais, humanos e seres inanimados, como árvores e casas, convivem e interagem sob as mesmas características, em pé de igualdade. Todos têm suas personalidades, princípios, qualidades e defeitos. Através dessas fábulas, a sabedoria de caráter moral era, e é passada, para as novas gerações. Essas histórias míticas exemplificam o certo e o errado no comportamento moral humano.

Thais Beltrame circunda esse universo literário. Certamente a artista traz de seu trabalho como ilustradora referências para seu trabalho artístico, ou talvez, subverta esse primeiro universo. Sua produção cita claramente esse mundo das fábulas. Seus desenhos, gravuras e instalações trazem cenas de florestas, pequenas cidades ou ambientes domésticos, onde animais e pessoas parecem desempenhar um papel no desenrolar de uma história. Mas nos trabalhos da artista não há história precisa, os personagens parecem aguardar, em uma reflexão do que passou, e em um momento de espera contemplativa por uma história que está por vir.

Os animais que normalmente aparecem nas fábulas como símbolos de qualidades humanas como força, sabedoria e astúcia, aparecem também nos trabalhos de Thais, e carregam em si essa simbologia. Em um dos desenhos da artista, vemos em primeiro plano um coelho, que nos observa do alto de sua sabedoria, parado em uma elegante posição ao lado de uma janela, preso em um ambiente doméstico. Pela janela vemos uma figura humana, que está de costas, e olha para um horizonte vago do alto de um balanço, em um estado meditativo. Esse personagem, assim como as demais figuras humanas destes trabalhos, tem sempre feições infantis, símbolo de pureza e inocência, outra referência ao mundo das fábulas. Uma página em branco esperando por sua história.

Como técnica de construção, a obra de Thais tem como ponto de partida o desenho (talvez uma escolha natural, pois responde diretamente ao universo do livro, do papel, e da grafia). É a partir do desenho, algumas vezes acompanhado de aquarela, que o trabalho se desdobra em gravuras, colagens, instalações e objetos compostos por camadas de desenhos recortados.

Seus trabalhos lembram também as iluminuras medievais, e certamente respondem a elas, sobretudo no formato diminuto que a maior parte da produção da artista assume, mas também quando a artista insere manchas e chapados de preto ou tinta dourada em seus desenhos, ou ainda no trabalho onde é inserido pequenos papeis coloridos semi-transparentes que formam o vitral de uma janela. Na composição de Thais, assim como nas iluminuras, há uma economia de formas e personagens, apesar de cada elemento receber detalhes excessivos.

A artista detalha seus desenhos a exaustão, o que faz com que mesmo em desenhos de grande formato, ou em suas instalações com desenhos realizados diretamente em paredes, essa referência se mantenha presente na dualidade entre a escala do trabalho, e a escala do traço.

Esse é o universo apresentado na exposição ‘onde não estou’, cenas criadas através de um delicado desenho de estremo labor apresentam um mundo de intensa espera meditativa. Ao contrario das fábulas, das ilustrações, ou das iluminuras, nos desenhos e gravuras de Thais, os personagens são se comunicam, as ações estão sempre contidas em uma pausa silenciosa. Seus personagens olham para o horizonte, escalam árvores, ou almejam o céu através de frestas, sejam elas de portas, janelas ou alçapões, em busca do próximo passo, do decorrer dessa história.

É assim que Thais constrói o seu mundo, configurando esses elementos em recortes e camadas, que articuladas, constroem um cenário, uma paisagem – ainda que doméstica – para uma situação de espera e reflexão. Um mundo aprisionado no papel, um mundo de papel, um mundo que parece querer sair do papel, para invadir o mundo.

The universe of literature or storytelling is full of places. To create a story is to create a place for it to happen; to build a foundation through the narrative, a cartography that although fantastic and impossible to exist in our world governed by rules of physics, make it possible to insert and situate the reader in this universe; make him or her part of the story. Fable – Latin for ‘what is said ‘ – is a literary genre that originated in the East; a tradition of oral history, and is built for a world where animals, humans and inanimate objects such as trees and houses coexist and interact under the same features as equals. Everyone has their own personalities, principles , qualities and flaws. Through these fables the moral wisdom was, and is passed on to new generations. These stories exemplify mythical right and wrong in human moral behavior.

 Thais Beltrame surrounds this literary universe. Certainly the artist brings to her work as an illustrator references to her artistic work, or perhaps subverts this first universe. Her production clearly cites this world of fables. Her drawings , prints, and installations bring about scenes of forests, towns or domestic environments where animals and people seem to play a role in the unfolding of a story. Except in the artist’s artwork there is no precise story; the characters seem to wait, in a reflection of what happened, and in a moment of contemplative waiting for a story to come.

 Animals that normally appear in fables as symbols of human qualities such as strength, wisdom and astuteness, also appear in the work of Thais, and carry this symbolism as well. In one of the drawings of the artist, we see a rabbit in the foreground, as we are observed from the height of its wisdom, standing in an elegant position next to a window, trapped in a domestic environment. Through the window we see the back of a human figure, looking at a vague horizon from the top of a swing, in a meditative state. This character, as well as other human figures in the artwork always have childlike features, a symbol of purity and innocence, another reference to the world of fables. A blank page waiting for a story.

 As construction technique, the work of Thais has as starting point the drawing (perhaps a natural choice because it responds directly to the universe of the book , the paper, and handwritten). It is from the drawing, sometimes accompanied by watercolor, that the work unfolds in engravings, collages, installations and objects composed of layers of cut out drawings.

 Her work also recalls the medieval illuminated manuscripts and certainly respond to them, especially in miniature format that is most of the production of the artist, but also when the artist inserts stains and plain black or gold paint into her drawings, or even when small semi-transparent colored paper inserted to form a stained glass window. In Thais’ composition, as in illuminations, there is an economy of shapes and characters, while each element receives excessive details.

 The artist details her drawings to exhaustion, which causes that even in large format drawings, or at installations or drawings made directly on walls, this reference remains present in the duality between the scale of the work, and the scale of the trace.

 This is the universe presented in the exhibition ‘ where I am not;’ scenes created through a delicate drawing of extreme labor have a world of intense meditative wait. Unlike the fable, illustrations, or illuminations, Thais’ drawings and prints, the characters are not communicating and the actions are always contained in a silent pause. Hers characters look to the horizon, climb trees, or stare at the sky through the cracks, be it doors, windows or hatches in search of the next step, the course of this story.

 That’s how Thais builds hers world, setting these elements into layers and cuttings, which articulated construct a panorama, a landscape – even domestic – to a situation of waiting and reflection. A world trapped in paper, one paper world, a world that seems to want to leave the paper, to invade the world .